do discurso negativo

você já sabe como isso funciona: alguém menciona que o primo mais novo quebrou o braço, e de repente todos têm uma história de braço quebrado, pernas mais quebradas ainda, uma mais tenebrosa do que a outra. que seja mera manifestação do nosso ego narcísico etc — não precisa entrar em muitos detalhes. o que me custa um pouco compreender é essa alegria desmesurada que as pessoas parecem sentir por relatar desgraças, suas e alheias, numa pilha competitiva pra ver quem passou pela desgraça maior — ou ouviu falar, que nesse exercício discursivo é mais ou menos a mesma coisa. vê: não estou falando de tirar voz de quem sofre em silêncio. minha perplexidade é com esse prazer ególatra do discurso negativo, de contar a desconhecidos todas as coisas ruins que acontecerem a você e aos seus conhecidos (ou mesmo a gente que você nem conhece mas sobre quem ouviu falar, numa conversa com a vizinha ou na televisão) e nem tanto por se colocar como vítima; simplesmente pra dizer que eu conheço o mundo e ele é um lugar horrível. porque é um discurso negativo de conformada incomformação (que absurdo! — toma mais um gole da cerveja). é um discurso improdutivo, infrutífero, pessimista e incrivelmente triste. e se não aconteceu nada de ruim com você, tem logo aquela história de uma família que morreu toda num acidente de barco quando estava fazendo turismo etc etc. ou aquele cara que tinha quarenta e sete amantes e roubou metade da fortuna da velha com que se casou. espalhar desgraça pelo prazer da desgraça é um esporte nacional que eu jamais serei capaz de compreender. porque não se trata, mais uma vez, de reverberar uma injustiça com a esperança de que algo mude. nunca. é questão de apontar a dureza da realidade pelo prazer de declarar que se é uma pessoa informada. ou que já sofreu nessa vida e respeite minha experiência veja quantas coisas terríveis me aconteceram inclusive uma vez eu estava num bar numa cidadezinha do interior do Paraná e. puxa, que dor de cabeça! e vem aquele outro retrucar: ah, você não sabe o que é dor de cabeça; minha prima tem um tipo raro de enxaqueca que quando acontece ela não consegue nem levantar da cama por cinco dias. mas estão aí esses programas televisivos de exposição de desgraça alheia disfarçados com a nobre tarefa de denunciar as mazelas da sociedade e o sofrimento do cidadão de bem. tanto melhor seria um vício por espalhar discurso otimista, ainda que ingênuo, fazer acreditar que algo no mundo pode mudar se eu der um abraço na dona Ornela que vive em frente, aquela mesma que passa o dia vigiando a rua e repassando aos desavisados todas as desgraças que acontecerem com seus conhecidos, com a família do porteiro, com a mãe do vizinho e onde é que esse mundo vai parar.

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