outro pseudoensaio sobre o possível

me pego vez ou outra pensando em personagens passados, de histórias fechadas, e me aflijo com a finitude desse ponto final. quero voltar, recriar algum momento e criar outros. quase uma saudade. digo: bateu uma saudade do Luciano Almeida. não é bem (ou talvez seja) uma maniazinha de escritor. não dá nenhuma saudade do meu Pedro Rodriguez, por exemplo, porque viria daí uma explicação para meu gosto pelas séries, pelo fan fiction que muitas vezes me dei a escrever no começo da adolescência. a necessidade de se criar e recriar infinitas possibilidades, sempre. ter aberta a janela porque minha cabeça não sabe parar, não pode deixar de querer experimentar com situações esses personagens conhecidos, feito cientista maluco de desenho animado com suas cobaias. mas então há esses outros personagens, encerrados entre o início e o fim de um romance escrito, e já me atrevi continuar vez ou outra o que estava terminado, mas. mas não. porque está aí – e me dou conta e me acalmo – o que me encanta na literatura, o que me motivou a enfrentar um mestrado quando comecei a faculdade certa de que isso jamais me agradaria. o livro encerrado entre páginas finitas não é nunca uma história finita, não pode nunca esgotar todas as possibilidades da narrativa. ele poderia ser outro livro, sempre poderia ser outra narrativa. ou, mais ainda, poderia ser a mesma história contada de outra forma. e todo esse possível reside justamente no que não foi dito, no que não foi escrito, no que é para sempre possibilidade. curioso, ou mesmo contraditório que a linguagem permita e encarcere ao mesmo tempo o possível. o infinito. ela faz o finito mas só ela pode deixar entrever o infinito. curioso, contraditório. eu até diria sensacional, mas olha aí que palavrinha mais sem vergonha. ou, ainda, voltando ao raciocínio inicial, é isso também o que nos mantém escrevendo quando tudo já foi escrito. se Joyce não tivesse escrito porque houve Homero, se Dante não tivesse escrito porque houve Virgílio, se Camus não tivesse escrito porque houve Proust. sim?

[devo essa lógica ao amigo Evandro Affonso Ferreira, escritor rabugento mor.]

sei que é o que me mantém escrevendo, e ainda a certeza de que nunca se esgotarão as possibilidades, os possíveis. o devir. tudo aquilo que poderia ter sido e talvez seja, e talvez venha a ser, ou talvez não.

[Italo Calvino nos escreve isso, também, e que não a citação pela citação, mas porque a citação é uma forma talvez pouco eficaz, mas ilusória o suficiente, de nos sentirmos menos sozinhos. escreve, ao tratar do tema da visibilidade em Seis propostas para o próximo milênio: “… há uma outra definição na qual me reconheço plenamente, a da imaginação como repertório do potencial, do hipotético, de tudo quanto não é, nem feio e talvez não seja, mas que poderia ter sido.” mas isso é só parte de um raciocínio maior e muito bem elaborado, que vale a pena conhecer.]

e devo voltar ao que me fez escrever isso tudo. essa vontade momentânea de revisitar velhos personagens e explorar as possibilidades que no texto foram deixadas em aberto. penso, tenho saudades. imagino personagens alheios que me causam vontade semelhante e me alegro com o poder de criadora que determinou a imprecisão e as entrelinhas mui precisamente (ou o tanto quanto possível), tantas vezes mais poderosas na literatura. aí vem uma resignação incompleta, mas suficiente: a possibilidade que esses meus personagens causem essa mesma reação imaginativa em outros. que ecoem em outros, por tudo aquilo que foi omitido, que ficou por dizer. tudo aquilo que vez ou outra tenho vontade de dizer, escrever, precisar, aprisionar. então esperar a vontade passar, escrever um texto como esse, justificativa a mim mesma por algumas ideias imprecisas e voltar a ler o livrinho do Mario Benedetti, que é daqueles bons, daqueles que o protagonista deixa uma saudadinha, daqueles que me deixam imune ao som da TV ligada no Fantástico e ao ronco do (con)cunhado no quarto do lado, que faz parecer que a casa vai desabar a qualquer momento.

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